domingo, 8 de março de 2009

Os erros no desenho neoliberal da UEM e as consequências que a crise expõe

De: O valor das ideias - Carlos Santos
http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/03/os-erros-no-desenho-neoliberal-da-uem-e.html
Terça-feira, 3 de Março de 2009
O Banco Central Europeu é hoje alvo de duras críticas no Financial Times, que fazem eco de opiniões que têm crescido no seio da UE, para desagrado de alguns. A sua obsessão anti inflacionista e falta de capacidade para compreender os reais problemas à sua volta levaram a um tardio corte nas taxas de juro, argumenta-se, frisando mesmo que o Banco ainda estava preocupado com a inflação quando o mundo estava já a implodir à sua volta.
É particularmente interessante esta opinião quando alguns opinion makers rejubilaram ontem com os valores da inflação na zona euro, indiciando, argumentavam que o risco de deflação estava afastado. Um mínimo de cautela impunha-se a menos que o perigo da deflação não seja verdadeiramente compreendido, o que com toda a probabilidade é o caso.
Na reunião da próxima quinta não é assim expectável que um Banco que um banco que parece estar sistematicamente desfasado do desenrolar dos eventos, possa proceder a mais que um corte de meio ponto base na sua taxa directora, o que no contexto actual é de todas as formas que se queira ver, ridículo. E muito provavelmente, além da ortodoxia reinante, o problema do BCE passa pelo continuado uso de métodos de previsão e modelos de representação económica incorrectos. Já era assim quando lá estive.
A título exemplificativo, a previsão do BCE para a queda do output gap (a diferença entre o produto de uma economia e o seu máximo potencial) este ano era de 0,5% há algum tempo. Os dados mais recentes apontam para uma queda de 2% no output gap. Mecanismos económicos elementares implicam que essa queda induza um aumento do desemprego face ao esperado e, consequentemente, uma conjuntura em que a descida da taxa de inflação se torne inevitável. Como observam diversos analistas uma mais ousada descida das taxas que surpreendesse o mercado teria provavelmente impactos visíveis na economia, o que não sucede com o corte de meio ponto base.
Os problemas da estrutura económica da UEM começam a tornar-se tão claros quanto temos defendido que eles são. A zona euro foi construída com base na retórica das zonas monetárias óptimas de Mundell. Isto seriam áreas em que o ideal, suponha-se, seria a existência de uma moeda única.
Há contudo dois requisitos de base na teoria do Mundell, que a UEM não cumpre. Em primeiro lugar uma zona monetária óptima deve ter mobilidade perfeita de factores, para, na esteira desse utópico raciocínio neoclássico, se produzir um ajustamento que evite a existência de áreas mais deprimidas. Dito de outra forma, se as condições económicas se tornassem adversas em Portugal, a migração do trabalho para a Bélgica, onde por hipótese a conjuntura fosse expansionista, levaria, por interacção de oferta e procura a uma descida dos salários na Bélgica e uma subida em Portugal, repondo-se o equilíbrio. Ora basta uma simples olhadela para os salários reais nos diversos países da zona Euro para compreender que esse equilíbrio idílico pura e simplesmente não se produz. E o problema não será tanto dos modelos de funcionamento do mercado de trabalho que atulham as cabecinhas mais crentes. O problema é antes a inexistência de uma efectiva mobilidade dos factores de produção. Se no caso do capital isto não é problema, no caso do trabalho, a tradição europeia não é a dos EUA. Existem factores culturais, sociais, linguísticos entre outros que impedem que se verifique uma verdadeira mobilidade do trabalho. Assim, o mercado não se autoregula em face do desemprego. E aqui reside o busílis da divergência face aos neoliberais: se o mercado não corrige as disparidades de desemprego e salários ou aceitamos que elas se perpetuem, ou, como é minha opção, defendemos que existe um papel social do Estado. Se esse papel passa pela concessão de apoio aos desempregados, ou por manutenção de empregos não é para mim uma escolha. Passa pelas duas vertentes e ainda por uma terceira, de ordem mais supply side: baixar a curva de Beveridge, isto é, aumentar o fluxo de informação entre procura e oferta de trabalho. Porque, e lá está outro mito dos mercados autoreguláveis: a informação não é perfeita.
O segundo factor que afasta a UEM de uma zona monetária óptima prende-se com outro requisito de Mundell. Uma zona monetária óptima não sofre choques assimétricos. Isto é, mediante um choque negativo ele é sentido de forma idêntica em toda o espaço. Ora quem pretender que a UEM não está sujeita a choques assimétricos precisa de uma clara medicação para acordar e ver a realidade. O quadro actual mostra uma Itália com problemas de sobreendividamento público em relação ao PIB, uma Espanha exposta a uma crise no imobiliário, uma Aústria que encara seriamente a possibilidade de colapso de parte do seu sistema bancário por excessiva exposição ao risco de incumprimento do crédito no leste Europeu. Em que se traduz tudo isto? Numa heterogeneidade efectiva dos choques a que os membros da zona Euro estão sujeitos. E qual é o problema disso? Uma política monetária única não consegue responder a todos os problemas, porque eles são diferentes entre si. E como a política fiscal está barbaramente condicionada por essa invenção germânica que é o Pacto de Estabilidade e Crescimento, pergunta-se o que é suposto cada um destes países fazer para resolver os seus problemas? Não me venham com as tretas do ajustamento livre do mercado, porque, como se ilustrou acima, o mercado de trabalho não é fluído na UEM.
A conclusão dos pontos acima é inevitável: os problemas actuais apenas vieram desnudar o que muitos argumentavam há bastante tempo: o desenho da zona Euro pode ter servido objectivos políticos relevantes a nível da unidade europeia, mas acabou por, na prática criar um monstro que não tem capacidade de resposta quando confrontado com uma recessão desta envergadura. A questão dos contribuintes alemães faz sentido: porque vão eles suportar uma crise que não sentem da mesma maneira que outros? Mas então também faz sentido a visão dos franceses quanto ao apoio à Renault e à Peugeot para preservar primeiramente os postos de trabalho gauleses. E este tipo de raciocínio é desintegrador da União. Foi isto que Barroso quis dizer. Mas claramente há o risco de não tomando os países em conta o interesse das suas populações os ciclos eleitorais condicionarem as opções políticas. A solidariedade europeia de que falei em post anterior é um conceito que infelizmente não foi fomentado junto dos diferentes povos da União. Os resultados estão à vista. E o risco é quando passam de alternâncias de poder a manifestações de rua violentas, como se viu recentemente em Atenas. Porque o que a economia neoclássica não compreende á que as pessoas são reais!

Qual o problema do BCE no meio de tudo isto? A objecção a algumas soluções. A ideia de Jorge Sampaio e George Soros de criação de eurobonds de modo a diminuir o custo de endividamento de alguns países europeus e aumentar ligeiramente para outros é intolerável para Holandeses e Alemães. E para o BCE que não pode, em função do terceiro erro da UEM – o desenho dos seus estatutos – comprar directamente títulos de dívida aos estados membros. Ou seja o que o BCE pode fazer por exemplo pelas necessidades de capital dos bancos austríacos seria simplesmente criar-lhes linhas de crédito. Sucede que esta gente está convencida que a inflação é um fenómeno monetário exclusivamente. E, por isso, não tolera a violação do objectivo consagrado nos estatutos do banco: estabilidade de preços. Não se percebe por isso o quis dizer Joaquim Almunia ao advogar que existiriam soluções se um qualquer estado da zona Euro entrasse em risco de insolvência. Porque se não é possível fazer o bailout de Estados, nem o BCE actuar no auxílio de estados particulares, o que sobra, estando como disse Almunia no FT de hoje, os eurobonds excluídos politicamente? Ele responde que não diz mas que existem soluções. Podemos concordar com a interpretação do FT e entender as suas palavras como significando que a Alemanha poderia aceitar ajudar algum estado particular, mas nunca um conjunto de estados ou uma região. O problema é então duplo:
- por um lado, a famosa UE continua a depender em exclusivo do que a Alemanha quer ou não fazer – o que significa que se calhar chamarmos a isto tudo Alemanha em vez de UE! Terá o Hitler ganho a guerra 60 anos depois??
- por outro, e o que é mais grave, a liberdade de capitais e a integração financeira levam a que ninguém acredite que um país europeu caia sozinho. A utópica ideia de auxílio a um só estado ignora as interdependências que a UEM criou. A título de exemplo, as participações cruzadas entre bancos e seguradoras a nível europeu levariam rapidamente a efeitos de contágio se bancos na Áustria e na Itália caíssem em função do incumprimento de países de leste.
Em síntese, o desenho das instituições comunitárias atrapalha em lugar de auxiliar a resolução da crise. O BCE não tem sequer consagrada (como já escrevi em Outubro!) a função mais clássica dos Bancos Centrais: lender of last resort. Por aí poderia financiar os bancos em dificuldades. Mas o risco de colisão com a famosa estabilidade de preços leva a que essa função não esteja consagrada nos estatutos.
Quem quiser saber porquê terá a desilusão final com a loucura dos neoliberais. A função de prestamista de última instância tende a desaparecer para que os bancos tenham mais responsabilidade na gestão dos seus activos. E os depositantes? Que culpa têm se a Aústria tem bancos que emprestaram balúrdios ao leste? Toda. Diz a tal teoria que os depositantes têm o dever de vigiar os relatórios e contas das entidades onde depositam o seu dinheiro só o fazendo nas mais sólidas!! Portanto, caro leitor, vá tirar um cursinho de contabilidade bancária, porque a UEM entende que o leitor é reponsável por saber a situação financeira do seu banco.
Há coisas fantásticas…..
(a continuar)
Publicada por Carlos Santos em 16:40

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