domingo, 28 de fevereiro de 2010

JN - Tragédia na Madeira - Favelas mortais

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Construção precária nas margens das ribeiras quesulcam o Funchal rural contribuiu substantivamente para engrossar os óbitos provocados pelo temporal do dia 20
JN 20100228
ELMANO MADAIL
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"Aquilo era uma casinha pequenina. Agora, já tem lá três filhos casados, que construíram por cima. Se for à Câmara, ninguém tem licença para nada", garante Susana.

A mulher de 40 anos aponta o casario na outra margem do ribeiro que sulca o fundo de Vasco Gil de Baixo, zona rural do Funchal, e que acrescentou um cadáver aos mortos do temporal. À face do rugido das águas, blocos de arestas incertas e varandins precários agarram-se às escarpas de terra mole. Ali mora gente, a comunidade multiplica-se. E o risco também. Espalhado pelos múltiplos enclaves populacionais dos arrabaldes funchalenses.

Susana testemunhou a colonização marginal - que aproveita, até, o assoreamento provisório para enxertar uma casa no leito da ribeira - porque nasceu ali e lá vive com Marcelino. A casa deles, porém, é sólida. "Está licenciada, ao contrário daquelas", garante. "O ridículo é que a Câmara embargou-nos a obra várias vezes por um dos quartos não corresponder ao projecto", afirma. Marcelino ressalva que os técnicos também reclamaram a demolição dos casebres da margem contrária. Mas, depois, desistiram: "Para onde iriam as pessoas? Não têm outro sítio para morar…".

Senão, iam. Porque viver ali, naquela fundura verde onde viceja o inhame, se tem encantos - "no Verão, acordo com o cheiro dos eucaliptos e os passarinhos a cantar, e adormeço embalada pelo ribeiro", alega Susana -, para quem falta as opções do casal (ele é contabilista e colecciona carros, ela é professora do secundário), o valado íngreme é um pesadelo. Principalmente agora, "que as ribeiras, estreitadas com o entulho que atiram quando abrem uma estrada, não aguentam tanta chuva", diz Susana. "A água tem que correr, não é?".

Na trajectória da morte

E ela correu com tal fúria que, na manhã do dia 20, arrastou árvores, detritos, calhaus e terra encosta abaixo, sem cuidar de evitar as casas. Nessa trajectória mortal está, entre tantos, o Caminho do Moinho, na Chamorra. Ali morreram, logo no sábado infame, pelo menos duas pessoas; várias ficaram feridas. Ao fundo da rua íngreme que lá vai, Diogo Ramos chega com a mulher, Ana, também de 21 anos, e trava em pião na pista de lama. Entram numa das casas fincadas, em vertiginoso aprumo, na vertente do monte. Nela mora a família dele. Ou a que resta: "Morreu-me um primo, e outros cinco estão no hospital", contabiliza.

"Isto é assim: a casa de baixo é de uma família; depois, os filhos casam e constroem acima da casa dos pais, e assim por diante, até ocupar o talhão todo", explica o jovem, que tentou escapar à favela emigrando para Guernsey - sem êxito. De modo que cada faixa de casebres na vertical, até ao topo do monte, tem o mesmo apelido, com cada geração a colocar novo bloco em cima da habitação primeva. "Licença? Não há. Isto é considerado um anexo", afirma, subindo escadas de madeira para aceder ao cubículo onde vive.

O membro do clã mais antigo do enclave, a balconista Ana Nunes, de 41 anos, explica a progressão do aglomerado rudimentar e salubridade duvidosa: "Isto agora é uma cidade, mas antes era só arvoredo", garante. "O meu pai comprou um terreno e, com as próprias mãos, cortou os eucaliptos e fez a primeira casa com a madeira deles", recorda. "Isto foi há 40 anos, e, nessa altura, quem é que ganhava para morar lá em baixo (o centro urbano)?", interroga-se.

Urbanização selectiva

Continuam a ser poucos os nativos das zonas rurais a fazê-lo. Trepando do Atlântico ao cume, a ocupação da montanha obedece às leis da estratificação social num território que vive do turismo e cujo rendimento per capita está 28% acima da média continental. A zona baixa e mais antiga do Funchal, para onde convergem as ribeiras de São João, Santa Luzia e João Gomes acolhe, sobretudo, comércio e serviços; depois, começam os prédios a despontar entre vivendas incaracterísticas mas sólidas, da classe média, que ignoram os cursos de água, convivendo com ilhas de clandestinidade legitimada pelo tempo - como o Beco dos Álamos.

A seguir, e entre os altos muros dos bananais que restam, vêm as zonas nobres, com casas de arquitectura contemporânea e logradouros vastos o suficiente para acolher um dos famigerados enclaves inteiro, assentes em muros robustos - o Alto da Pena é exemplar. E tais casarões fixam a fronteira flutuante dos que partilham a vista do mar por obrigação e aqueloutros que não têm hipótese de deixar as ravinas. E, por fim, lá no âmago escalavrado dos montes, ficam as favelas dos desabonados.

O marido de Ana, Emanuel Nunes, desce da casa em tijolo de cimento com roupas e garrafões. Vão refugiar-se, mais os filhos de 9 e 16 anos, na casa dos pais dele, em Câmara de Lobos. E, contrafeitos, hão-de regressar: "Isto dá medo. Se pudéssemos, saiamos daqui", garante. "Mas quem é que pode? A gente ganha mil euros por junto, só dá para o dia a dia e pronto!", lamenta o cozinheiro.

Foi contingência similar que ditou a colonização resignada das margens das ribeiras madeirenses, com residências cubiculares e minúsculas, atulhadas de gente, a crescer em altura sobre terra demasiado vegetal para se fincarem. É impossível habituar-se a tal precaridade, mas a tragédia de sábado demonstra que se pode conviver com ela. Até que o céu e a terra voltem a desabar sobre a cabeça.

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